As chagas psicológicas e morais daqueles que se veem face a face com a monstruosidade humana
Encontro como Ditador: Uma Obra Arrasadora de História, Psique e Horror | Cinema
A força devastadora de “Encontro como Ditador” não reside apenas no fato histórico que aborda, mas na maneira visceral e quase torturante com que o cineasta Rithy Panh expõe as chagas psicológicas e morais daqueles que se veem face a face com a monstruosidade humana. O filme, que chega aos cinemas brasileiros em 2 de janeiro de 2025, é uma jornada aterradora, que não oferece consolo, nem redenção fácil, mas que grita por memória e reflexão.
Rithy Panh, com sua maestria única, volta seu olhar para o regime de Pol Pot e o Khmer Vermelho, um dos períodos mais horríveis e negligenciados da história recente. O genocídio cambojano, que vitimou quase 1,7 milhão de pessoas entre 1975 e 1979, é aqui evocado não apenas através da narrativa de fatos, mas pela experiência emocional crua dos personagens. Em uma abordagem que não se limita à simples exposição do terror, o diretor convida o espectador a se afundar nas fendas da mente humana diante da negação e da aceitação do mal absoluto. A escolha de Panh em centrar a história nos jornalistas franceses que visitam o Camboja sob a fachada de uma propaganda politicamente orquestrada revela, de forma brilhante, o abismo entre o que se diz e o que realmente se oculta.
Os três jornalistas, um fotógrafo, uma repórter e um intelectual simpatizante da ideologia revolucionária, chegam ao país com uma visão de respeito pelo regime, mas ao longo de sua estadia são confrontados pela monstruosa realidade que a propaganda do Khmer Vermelho esconde. O que começa como uma jornada com a expectativa de uma simples entrevista com Pol Pot – uma figura que, em sua retórica, aparece quase como um monstro em carne e osso, imbatível e cheio de certezas – transforma-se em um pesadelo psicológico, onde as certezas de cada um começam a se desintegrar diante da inegável perversidade do regime.
É impossível não ser tocado pela fotografia que Panh utiliza, que faz da devastação do território cambojano uma metáfora visual para a morte e a desolação humana. As paisagens áridas e estéreis refletem uma nação que foi esgotada, exaurida de sua própria humanidade. Ao mesmo tempo, elas contrastam com a espiral de tensão que vai crescendo entre os personagens. O diretor, que também é um sobrevivente da brutalidade do Khmer Vermelho, utiliza sua câmera para lançar um olhar impiedoso sobre a maneira como a memória humana lida com a barbárie: num processo de negação, de desvio, e de esforço para digerir a imensurabilidade do mal.
A narrativa do filme é profundamente perturbadora porque ela não busca apenas mostrar os horrores de um genocídio, mas expor as reações daqueles que estão à margem, tentando lidar com a inevitabilidade da história, sem encontrar respostas fáceis. Cada personagem carrega seu próprio fardo moral, e o roteiro não se acovarda diante da complexidade emocional de reagir a um regime que se nutre do medo e da manipulação, e ao mesmo tempo mostra o dilema de se confrontar com a face da crueldade sem possibilidades de um ato de justiça eficaz.
Panh não oferece uma visão simplista do mal. Ele nos joga no epicentro de uma ética dilacerada, onde não há respostas claras sobre a reação à maldade, nem caminhos fáceis para lidar com o poder absoluto e cruel. Como reagir diante de um Pol Pot que nunca se arrependeu? Como encarar um mal que parece imbatível, irreparável? O filme não faz julgamentos, mas coloca o espectador diante da crueza dessa indagação, exigindo uma reflexão imersiva e desconfortante sobre o que fazemos com nossa memória histórica e com os monstros que ela ainda engendra.
Ao final, o longa não é apenas uma viagem ao passado, mas um grito para o futuro. Panh deixa claro que o mal não é apenas uma questão do passado, mas uma ameaça contínua. O que vemos na tela, com sua estética sombria e suas cenas implacáveis, é um lembrete de que, enquanto o mundo vira suas costas para o sofrimento e a brutalidade, as cicatrizes do genocídio continuam vivas, sussurrando em cada esquina da história. O filme de Panh se torna um ato de resistência à amnésia histórica, um esforço para garantir que os erros de ontem não sejam repetidos amanhã.
Em suma, é um filme de uma densidade psicológica e emocional impiedosa. Ele mergulha nas trevas da história para expor a verdade de maneira crua, sem adornos ou piedade. Não é apenas um estudo sobre o genocídio cambojano, mas uma análise do medo, da negação e da imoralidade que permeiam o espírito humano diante da face do absoluto mal.
Por Paulo Sales
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